“Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Trouxeste a chave?”
Carlos Drummond de Andrade
Tinha apenas seis anos e várias sardas no rosto redondo. Tinha também um cabelo ruivo, talvez a fonte de sua enorme agitação. Mas os olhos eram azuis, bem azuis e bem brilhantes (na família, só ela e o avô nasceram de cabelo vermelho e de olhos azuis). Seu nome era Gabriela e todos a chamavam de Gabi.
Gabi seguia com passos animados a corajosa professora; afinal, não era fácil servir de guia para um grupo de vinte crianças de seis anos numa feira de livros.
Fazia um calor abafado naquele lugar gigantesco e, apesar de muitos preferirem a companhia dos joguinhos eletrônicos, o coração da professora, desnorteado com a bagunça das crianças, pulou de alegria quando seu grupo de pestinhas foi para o lado onde se viam livros por todos os cantos. Livros com cheiro de papel!
O perfume daqueles livros enchia o ambiente de mágico frescor, como se fosse impossível deixar de ficar ali, virando páginas e páginas e sentindo a maciez das folhas de textura delicada. Os olhos das crianças também estavam nas pontas dos dedos.
Era uma multidão de mãozinhas que procuravam mistérios escondidos por trás das frases, dos versos, das entrelinhas. A professora enxergou com clareza sua responsabilidade enorme e foi seguindo e contando e recontando aqui e ali seus pequenos farejadores de palavras. De palavras?
Nem sempre. O grupo da Gabi remexia as prateleiras à cata de uma capa sugestiva, ou de páginas inundadas de cores atraentes. Só isso? Será?
Com essa dúvida, a professora sequer notou a garotinha de cabelos vermelhos sentada no pufe. Gabi adorava sentir o cheiro das histórias (aprendeu isso com o avô, que lia para a neta, antes mesmo de ela saber falar).
Então, enquanto os outros se acotovelavam na fila do caixa, exibindo suas novas aquisições, Gabi saboreava com seus olhos azuis o sentido das palavras que a enchiam de curiosidade.
Leu diversas vezes um verso bem comprido para sentir totalmente o significado de quimera.
Repetia alto a palavra, mas ninguém notava, com aquele barulho de vozes e de pés no chão de madeira e de lata. Quimera, quimera, repetia, feliz com a sequência de sons que pareciam dizer maravilhas. Continuava a ler e voltava para pronunciar devagarinho: quimera... A palavra parecia alegre, diferente de queixume, que era triste triste. Diferente de fiasco, de tom assustador.
A professora sempre tinha dito que as pessoas se vestem de palavras. Palavras que têm vida e que vão colorindo e perfumando tudo por onde elas passam com seus passinhos de significado.
Vida elas tinham mesmo, Gabi as via saltar da folha branquinha do livro e fazer malabarismos. Algumas magrinhas e frágeis, com voz rouca, como murmúrio. Outras bolachudas e de nariz empinado, como acrópole e represália. Mas havia também as palavras que não paravam de dar risadinhas, as que pareciam ficar na ponta da língua de quem as pronunciava para mergulhar de novo no papel aconchegante – deviam fazer parte daquelas histórias que todo mundo gosta de ler: bandolim, auréola e cafuné.
Apesar de não conhecer suficientemente o que aquelas palavras queriam dizer, Gabi gostava muito delas e adorava vê-las dançando a sua volta, brincando com as pintinhas de seu rosto de menina sardenta.
A emoção era tão forte, que a ruivice de seus cabelos parecia ainda mais viva, tentadora, como se tivesse sido pintada com o vermelho mais aceso da caixa de lápis de cor.
Gabi foi transportada para aquele mundo de sonhos e nem se deu conta de que sua professora, desesperada, à beira das lágrimas, procurava-a no meio da multidão.
Depois de muito tempo, quando ela foi encontrada, as outras crianças já estavam sentadas em seus respectivos lugares, no ônibus que as levaria de volta. Nas sacolas de plástico, iam aquelas capas bonitas que a Gabi não havia comprado: todos os seus amigos carregavam muitos livros empacotados e estranharam vê-la entrar sem nada na mão.
O que as crianças não perceberam é que só Gabi entendeu perfeitamente a lição daquele dia. A professora, feliz, ouviu a menininha ruiva contar-lhes que tinha achado a chave para entrar no mundo das palavras, aquela chave transparente, feita da vontade de conhecer tudo por lá. Quase perdendo o fôlego, Gabi falou, com seus olhos azuis cheios de brilho, que foi uma emoção encontrar a palavra quimera vestida de sonho e que não via a hora de apresentar sua palavra para o vovô:
- Ela vai pular da minha boca para dar um beijo na bochecha dele!
E repetia, baixinho, para não esquecer:
quimera...
quimera...
(ilustração: Vanessa Prezoto)
Delícia de texto! 👏